Fragmentos de Sebastião Alba
NINGUÉM MEU AMORNinguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.
NÃO SOU ANTERIOR A ESCOLHANão sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.
A UM FILHO MORTOOntem a comoção foi da espessura dum susto
duma árvore correndo
vertiginosamente para dentro do desastreE já não choramos. Passamos
sem que o mais acurado apelo
nos decidaNas camisas
teu monograma desenlaça-se.
Tua mão vê-o nos céus nocturnos
sabe que há uma ígnea
chave alguresMinha tristeza não tem expressão visível
como quando a chuva cessa
sobre a dádiva fugaz do nosso sangue
que hoje embebe a terraÉ tal a ordem em nós
que um odor a bafio sai de nossas bocas
e uma teia de aranha interrompe o olhar
que te envolveu em vão.
O LIMITE DIÁFANOMovo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.
HÁ POETAS COM MUSAHá poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.
GOSTO DOS AMIGOSGosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.
EPÍLOGOFui
hóspede desta mansão
na encruzilhada
dos meus sentidos.
O verso apenas é,
transversal e findo,
o poleiro evocativo
da ave do meu canto.
Essa ave em que o Outono
se perfila
e, cada vez mais exígua
no rumo e nas vigílias
do seu bando,
de súbito, espirala
até sumir-se
num país imaginário.
PRAIAEntre dois domingos
a cidade oculta-nos
a lisa permanência do vento
e ele retifica uma duna
Mas já a luz elide
nossas olheiras do asfalto
velozes véus de areia descobrem
pequenos sarcófagos de conchas
Refugiamo-nos
Mortal só a distância
de nem um indício no mar.
CERTO DE QUE VOLTAS, CANÇÃOCerto de que voltas, canção,
a incerta hora,
espero como quem mora
só, a visitação.Sei, por sinais e anjos e desviados,
que rebentas dos sonhos desolados
em flores no chão.Apenas flores, nem nimbos na lapela.
Flores para a mesa,
com o odor da certeza
de água, vinho e pão.Apenas flores e tu,
ó meu amor sem nome,
e a nossa dupla fome
dum menino nu.
Sebastião Alba, nasceu em Braga, Portugal em 1940. Após viajar para Moçambique, passou a conviver com um importante grupo de escritores e intelectuais. Foi jornalista, guerrilheiro político, e teve uma vida bastante agitada e cheia de desilusões, com passagens por prisões e hospitais psiquiátricos. Alba passa com o tempo a viver como andarilho, acabando por morar na rua e morrendo atropelado por um motorista em Braga sua terra natal.
"um dos grandiosos deuses humildes da palavra", foi como se referiu a ele José Craveirinha, considerado o maior poeta africano e primeiro escritor moçambicano a ganhar o Prêmio Camões de Literatura.
Frases interessantes de Sebastião Alba
"Escrevo com terrível dificuldade: reescrevo, colo, interpolo, publico um poema como quem o espelha. Armo a oficina em qualquer parte, sem tabuleta que o indique. Ninguém sabe, mas ali sua-se"
"Sou quem os que amo (ou detesto) pensam de mim. Pouco mais"
"Quem disse que o tesouro dos poetas são 'montes de papéis desarrumados / e barras de oiro quando o sol se põe'? Eu não aspiro a tanto, mas tenho alguns bens: sapatos novos, calças de ganga, uma camisa de flanela e um relógio de pulso."
"A Poesia foi, para mim, corso: de quando em vez, fazia abordagens. Claro que trago comigo, como qualquer pirata que se preza, o mapa desse tesouro, onde ninguém o encontrará: na pala do olho direito — com o esquerdo, não sei porquê, vi sempre melhor.”
Oi,DU!Não conhecia o autor.Gostei muito e vou procurar mais coisas para ler.Obrigado e um abraço.
ResponderExcluirConhecia muito pouco de S. Alba, na verdade só o primeiro poema que vc postou... Obrigada por postar coisas tão lindas. Ganhei o meu dia, com toda essa poesia!
ResponderExcluirUma noite de paz!
Bjs.
Adorei ser apresentado a Sebastião Alba. Não conhecia-o.
ResponderExcluirCitei seu blog no
ResponderExcluirhttp://baudomultiplas.blogspot.com/2009/09/esse-blog-mexe-com-meus-sentidos.html
Se quiser ver!
Bjão!
Senti-me como quem vai à Pasárgada.
ResponderExcluirFui recebida com um banquete de poesias e saboreei cada verso.
Fui apresentada a Sebastião Alba e adorei conhecê-lo.
Como agradecer tão gentil anfitriã?
Obrigada pelo presente que concede a nós, seus leitores, em cada post, feito com tanta dedicação e carinho.
Abraço enorme, minha querida.
Angel
Não sabia da história dele, mas já ouvi falar e tá li alguns poemas. Adorei. Eu adoro poesia, a arrumação das palavras trazendo pra quem lê um sentido lúdico, que toca o coração e ainda faz a gente pensar.
ResponderExcluirVou ler mais sobre Alba.
Beijos
Que delícia acompanhar o cair da noite assim, com poesia... BEijos carissima
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