Fragmentos de Ita Portugal

18:02 Dulce Miller 1 Comments


Restolho 

Tudo bem. Tudo indo. Tudo certo. Tanto amor. Tudo incerto. 
Tanta coisa ruidosa. Tanta saudade danosa. Tanto querer. Tanto fazer. Tanto prazer. Tanta espera pelo nada. Tanto frio no vazio. Tanto choro sem consolo. Tanta loucura solitária. Tanta dor sem cura. Tanto aqui. Tanto muito pelo pouco. Tanto pouco pelo muito. Tanta escuridão sem motivo. Tanta claridade sem necessidade. Tantos presentes urgentes. Tantos futuros incertos. Tantos invernos nus. Tantas primaveras mortas. Tantos ensaios sem roteiros. Tantas peças sem palmas. Tanta coragem sem causa. Tantos medos sem motivos. Tantos punhos cerrados. Tantos abraços contidos. Tantos ganhos sem necessidade. Tantas necessidades sem ganhos. 

Tantas buscas sem encontros. Tantos imaginários. Tantos silêncios perversos. Tantas portas abertas. Tantos corações fechados. Tanta cumplicidade sem par. Tanto amor desperdiçado. Tantas lembranças acumuladas. Tanto eu presente. Tanto tu ausente.


Tanto faz

Tanto faz se é noite ou dia, se é tarde ou cedo, se é inverno ou verão. Tanto faz se é quente ou frio, outono ou primavera.
Tanto faz a lua ou as estrelas. A brisa ou a tempestade. O escuro ou claridade. A chuva ou o sol.
Tanto faz o dia, tanto faz a hora, tanto faz o silêncio ou barulho. Tanto faz eu ou o breu. A ausência ou presença. A música ou a dança. O certo ou duvidoso. O sim ou não, tanto faz.
Tanto faz o riso ou o choro. A dor ou alegria.
Tanto faz se a saudade está de partida ou chegada.

Sem você, tanto faz.

Pronta-entrega

Espio pela janela com um olhar afetuoso o recurso legítimo do amor e rendo-me, acreditando nessa pronta-entrega que me traz benefícios e sacia a minha gulodice sentimental.

O amor vale, qualquer segunda-feira nebulosa, terça desastrosa, quarta sem prosa, quinta sem rosas, sexta pavorosa e no sábado a gente acaba se encontrando no barzinho da esquina para tomar umas e outras e colocar o papo em dia sobre todas as outras ladainhas que valem o amor.

O amor vale até o que não está no contrato. Vale o esforço do braço para dar um abraço sem merecimento. A lágrima de contentamento, os deslizes de pura alegria. As bochechas vermelhas, envergonhadas. O suspiro do coração florescido. O formigamento nas mãos. O versinho vulgar, inventado para agradar. A piscadinha discreta no jantar de família.

O amor vale os tombos, as enxurradas, as invernadas solitárias, a carta cheia de saudades. A espera no portão. A produção para o jantar íntimo.

O amor vale a exclusividade. A paciência de Jó, que geralmente não temos.

O amor vale ser bobo. Errar e desculpar. Dar um jeito na vida. Arrumar um lugar nas gavetas para outros pares de roupas. Vale tocar, apertar, ouvir música juntos, aquecer os pés, fazer uma gentileza, repetir um carinho. 

Vale pela taquicardia. Pela pronta-entrega. Pelas vontades saborosas.

Vale a doação, o carinho. O amor vale a ausência de qualquer teoria. Por si só o amor vale. E vale porque amar é bonito.


Declaração

Eu sou, sem morrer no acaso, sem fazer cerimônia, sem dormir no ponto, sem esquecer as dores.

Eu sou, e antes de pertencer aos conceitos, às regras e situações, sou da minha investigação particular, sou do meu tempo. Sou do ócio, da preguiça e do prazer pelo nada. Sou também da pressa pelo afeto. Do silêncio que reluta em existir. Sou dos outros quando quero e geralmente na hora errada,, sou de mim mesma por necessidade da solidão.

Eu sou do mundo e principalmente do meu mundo habitado pela alegria mesmo que passageira. Sou dos atalhos por pressa, sou da ventania por impaciência. Sou do mato por natureza. Sou da banalidade pela extrema necessidade de desafogar as culpas.

Sou do afeto que me destinei. Do meu cotidiano. Sou do dia atarefado. Da noite escura. Do infinito do mar.

Sou da ilusão. Das confusas idas e vindas. Da insistência pela história. Sou de acreditar. De me perder nos romances. De entregas e depois arrependimentos. Sou da saudade dolorida. Das esperas angustiantes.

Sou da minha vasta imaginação. Da sobrevivência. Das tristezas ocasionais. Das perguntas sem respostas. Das respostas sem perguntas.

Sou dos planos sem motivos. Sou de tudo e às vezes do nada. Da fuga por medo. Da razão por obrigação. Da reza por devoção. Da fé por oração.

Sou do que valeu a pena. De momentos eternos. Das lembranças. Sou sem vergonha de ser.


Coisas

Então eu era pequena e vivia na ponta dos pés espiando e desejando o mundo dos adultos.Aprendi coisas difíceis. Adultos sabem tantas coisas. Inventam outras. Adultos frazem a testa. Criam rugas. Trabalham o tempo todo. Juntam coisas inúteis. Engordam. Ficam nervosos. Adultos têm problemas reais e imaginários. Ficam zangados. Andam apressados. Fazem regras e desobedecem leis. Guardam dinheiro, guardam mágoas, conservam coisas e descartam pessoas. Ficam cansados. Adoecem rapidamente. Vivem cheio de dúvidas. Fazem muitas perguntas e não encontram respostas.

Os adultos se apavoram. Possuem uma série de medos. Querem ultrapassar limites. Lutam por coisas. Competem o tempo todo. Complicam coisas simples. Estudam coisas desnecessárias. Ficam tristes com facilidade. Choram sem necessidade. Entopem-se de felicidades provisórias. Desiludem-se. Não se entendem. Ama por obrigação. Esquecem por suposições. Machucam por ilusões. Passam adiante as responsabilidades. Esquecem das flores.Afugentam os pássaros. Resumem os carinhos. Dispensam a alegria.

Com os adultos a folia é silenciosa, os palhaços ficam sérios e o circo dorme.
Adultos escolhem pelos olhos e condenam o coração.

São coisas que aprendi e quero esquecer.

Ita Portugal

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*Imagens neste post - arte do © Loui Jover










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