Fragmentos de Amalia Bautista

00:02 Dulce Miller 9 Comments

Sei que me estou a afogar, mas ao menos
consigo manter a cabeça de fora.
Por isso, peço-te,
não venhas tu fazer ondas.
Não houve nunca deus, nem virgens, nem santos,
nem ícone que proteja, nem oração que console;
nunca houve milagre ou prodígios,
nem salvação da alma ou vida eterna;
nem mágicas palavras, nem bálsamo eficaz
contra a dor que nunca se atenua;
nem luz do outro lado das sombras,
nem saída do túnel, nem esperança.
Só nos acompanha nesta travessia
um anjo da guarda perplexo que suporta
uma vida de cão igual à nossa.
Conta-me outra vez, é tão bonita
que não me canso nunca de a ouvir.
Repete-me de novo, os dois da história
foram felizes até à morte,
ela não foi infiel, ele nem
se lembrou de a enganar. E não te esqueças,
apesar do tempo e dos problemas,
continuavam a beijar-se cada noite.
Conta-me mil vezes, por favor:
é a história mais linda que conheço.

Ao Fim são muito poucas as palavras

que nos doem a sério e muito poucas

as que conseguem alegrar a alma.

São também muito poucas as pessoas

que tocam nosso coração e menos

ainda as que o tocam por muito tempo.

E ao fim são pouquíssimas as coisas

que em nossa vida a sério nos importam:

poder amar alguém, sermos amados

e não morrer depois dos nossos filhos.

Todos os dias sussurro para mim mesma,

mantém o equilíbrio. Tudo te persegue,

tudo assusta, a tua vida inteira depende

de um frágil fio e de um azar injusto.

A tua vontade não pode grande coisa.

Não percas o pé. Mantém o equilíbrio.

Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer só coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.
Há meses que vivo rodeada
por uma substância negra e pegajosa
que invadiu a minha casa. As paredes,
o chão, as janelas e os móveis,
a comida, os livros e a roupa,
o teclado do computador, as plantas,
o telefone… Está tudo impregnado
com esta pez escura, a mesma que respiro
e que me mata pouco a pouco.
Dizem que os venturosos e os néscios
chamam melancolia a esta porcaria
que apodrece o coração e asfixia a alma.
Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa vontade
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem nos deve esperar, nem sequer
quem temos de aguardar no meio
de um cais frio. Não sabemos nada.
Avançamos às cegas e duvidamos
se isto que se parece com a alegria
é só o sinal definitivo
de que nos voltámos a enganar.
Deixa que te seduza a dentadinhas,
sente na pele as pétalas de rosa
que sabem ser seus lábios quando quer.
Escuta como chama e como cala,
entrega-te aos seus gestos, à ausência
de gestos, e derrete-te se podes
sem pudor, sem reparos nem vergonha,
perante o seu convite ou face ao teu.
Queima as normas de comportamento
e despedaça a boa educação,
estilhaça os costumes, reabilita
por uma noite ao menos a loucura.
Um último detalhe imprescindível
para que tudo saia em condições:
procura que não seja o teu marido.
Amalia Bautista nasceu em Madrid em 1962.
Jornalista de formação, trabalha como redactora no gabinete de Imprensa do Conselho Superior de Investigações Científicas.
Publicou La mujer de Lot y otros poemas (Llama de amor viva, Málaga, 1995), Cárcel de amor (Renacimiento, Sevilha, 1988),Cuéntamelo otra vez (La valeta, Granada, 1999), La casa de la niebla. Antología 1985-2001 (Universitat de les Illes Baleares, 2002),Estoy ausente (Pré-Textos, Valência, 2004), Pecados, com Alberto Porlan (El Gaviero, Almería, 2005) e Tres deseos, Antologia)(Renacimiento, Sevilla, 2006).
Podemos encontrar poemas seus nas seguintes antologias: Una generación para Litoral (Litoral, Málaga, 1988), Poesia espanhola de agora (Relógio D’água, Lisboa, 1997), Ellas tienen la palabra(Hiperión, Madrid, 1997), Raiz de amor (Alfaguara, Madrid, 1999), La generación del 99 (Nobel, Oviedo, 1999) e Trípticos Espanhóis-3º, (Relógio D’água, Lisboa, 2004).

9 comentários:

  1. Que post bonito!! Sublime, adorei!!!Vc coloca coisas de primeira grandeza aqui no Blog.
    Eu gosto muito das matérias do NORTE, coisas de relev^ncia existem por lá. Gostaria de postar alguma coisa de lá, posso??? Te aviso quando postar. Beijos

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  2. Adorei!Não conhecia a autora(que vergonha),e passo a ser fã,a partir desse ótimo(como sempre)post.Um grande beijo,Du!!!

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  3. Oi flor..

    Tudo bem??

    Gostei mais do 3º.. é fofo este texto... (suspiros..)...r.s

    Quanto ao filme, assiste sim... vc vai dar boas risadas.. mas não repare muito que as roupas, estilo e vidas são referentes aos anos 80 tá...r.s.

    ;)

    Bjos

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  4. Bom dia filha!

    Não conhecia e como sempre você me apresentando autora ótimos como essa mulher que pelo meu entendimento é maravilhosa.
    Gostei e para mim é a vida que vivemos literalmente nos dias de hoje:
    "
    Não houve nunca deus, nem virgens, nem santos,
    nem ícone que proteja, nem oração que console;
    nunca houve milagre ou prodígios,
    nem salvação da alma ou vida eterna;
    nem mágicas palavras, nem bálsamo eficaz
    contra a dor que nunca se atenua;
    nem luz do outro lado das sombras,
    nem saída do túnel, nem esperança.
    Só nos acompanha nesta travessia
    um anjo da guarda perplexo que suporta
    uma vida de cão igual à nossa."

    Falou tudo e mais um pouco.

    Espero que você tenha um dia lindo e cheio de luz, não perca a esperança nunca, minha filha, te amo muito, mais do que você imagina.
    Beijos e beijos!

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  5. Não conhecia e adorei os versos, ficaram em mim, na pele, sabe? Muito bom mesmo... Vou buscar por mais.
    Beijos Du

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  6. Oi querida

    Belos poemas. Confesso, nunca tinha lido um poema dela.
    São tantos poetas , escritores que fica impossível lê-los.
    Sendo assim, ficamos gratos por nos presentear com esta maravilha e dizer que tens bom gosto.

    Uma linda tarde.

    Besos

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  7. Du,

    A primeira é um tapa na cara, rsrs.

    " Sei que me estou a afogar, mas ao menos/ consigo manter a cabeça de fora./ Por isso, peço-te,/ não venhas tu fazer ondas."

    Muito boa mesmo.

    Grande abraço.

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  8. Carmen00:59

    Du,

    Onde está tua caixinha de recados?
    E agora?
    Saudade.
    bjs.

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  9. Ta bom, ta bom, ta bom.

    Sem caixinha, beijinhos acá!

    Beijooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo

    bem grandããããooooooooooooooo

    Abraçooooooooooooooooooooooooooooooooooooo

    bem fortããããããoooooooooo

    #endoidandonamadrugada!

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