Sorrisos achocolatados
Durante alguns anos na minha vida, eu senti vergonha de ser ‘naturalmente’ feliz. Por quê?
Eu tinha 9 anos, normalmente ria de qualquer coisa, sempre brincando com meus amiguinhos da escola ou com os professores, era uma legítima “serelepe”. Um dos alunos que se sentava ao meu lado, levava chocolates na mochila e vendia para a turma, eu era compradora assídua, chocólatra assumida desde então! O nome dele era Júlio, um menino pobre e triste, muito sério e inteligente, meu melhor amigo na época. Mas o Júlio tinha um problema sério, ele não sorria nunca, nunca mesmo! Por mais que eu tentasse, não conseguia ver alegria naqueles olhinhos negros e assustados. Um dia, na hora do recreio, ele me contou que roubava de um mercadinho perto da casa dele os chocolates que levava pra vender na escola e que depois entregava o dinheiro para a mãe doente comprar comida pra ele e os irmãos. Então, olhei pra ele mais assustada ainda, quando ouvi a pergunta que me deixou traumatizada: “Tu não tem problema nenhum, né Du? Tu tá sempre rindo de tudo, né?”. Ele fez essa pergunta com lágrimas nos olhos, olhando para os meus, que nesse momento choravam também.
À partir daquele dia, eu não conseguia mais sorrir na escola, inconscientemente, em respeito ao meu amigo. Os colegas estranharam, a professora chamou meu pai pra ver se entendia o que estava acontecendo, mas eu dizia que estava tudo bem… e estava mesmo, com a diferença de que eu não era mais a menina feliz que alegrava a turma inteira com risadas sem sentido (?). Meu único objetivo era tentar fazer o Júlio sorrir me entupindo de chocolates: comprava para mim, para os professores e para os colegas também.
Um dia ele faltou à aula e, quando voltou, nunca mais levou chocolates; pegaram-no roubando e contaram para a mãe dele. Ele mentia que ganhava o dinheiro pedindo na rua. Tentei ajudar, disse que ia pedir para o meu pai, mas o Júlio não quis, disse que já tinha arrumado um emprego de ajudante numa obra perto da casa dele. Onze anos ele tinha e tantas mentiras, tanta tristeza…
Sem jamais saber, o Júlio criou sem ferimentos uma cicatriz enorme no meu coração. A ironia dessa história é que eu tinha sim, motivos para sofrer. Na época, havia uma madrasta na minha vida que, ao meu ver, era pior do que a da Branca de Neve. Ela só não tentou me matar, mas de resto não perdia em nada comparando as maldades. Meu pai saía de casa bem cedo pra trabalhar, voltava muito tarde e não sabia das surras que eu levava toda vez que reclamava qualquer coisa para ele. Na verdade, ele nunca soube, nem o Júlio, nem mais ninguém. Até hoje.
Eu era uma engolidora de sapos perfeita para a idade que eu tinha. Ir para a escola era minha maior alegria, eu amava estudar. E continuei amando os livros, apesar dele, do meu amigo que não conseguia sorrir porque era pobre demais e se sentia culpado (com toda razão) por ter que roubar para sobreviver e, por isso mesmo, não sabia sonhar.
Já eu sonhava muito com uma vida melhor e mais bonita, mesmo inventada. Na prática eu fazia apresentações de dança, jogava vôlei, escrevia poesias toscas no jornal do grêmio estudantil, tentei o teatro (mas isso não deu certo, foi um grande fiasco)… pensando bem, talvez isso explique muita coisa na minha vida… pois é.
Depois daquele ano, mudei de endereço e de escola, nunca mais soube notícias do Júlio, mas jamais esqueci da tristeza que ele plantou dentro de mim... incoerentemente, agradeço o que ele fez.
Sim.
Graças a ele, eu percebi que não era a única a sofrer, senti as dores de um mundo inteiro dentro do meu pequeno coração e, ao mesmo tempo, um certo orgulho por conseguir driblar minha dor de forma a não contaminar os outros à minha volta. O Júlio me ensinou a ter uma consciência solidária, isso é fato. Com o passar dos anos, fui resgatando a alegria da minha essência, da minha personalidade.
Quem me conhece hoje sabe que tenho uma natureza engraçada e feliz, apesar de todos os pesares que já vivi. Pretendo continuar assim, chorando sempre que sentir vontade, não importando onde eu esteja, e dando gargalhadas quando qualquer coisa fizer minha alma vibrar de alegria.
Hoje lembrei do Júlio conversando com uma vizinha que está sempre triste. Contei pra ela a mesma história e, no final da nossa conversa ela sorriu, agradeceu com um abraço e me deu um pedaço de bolo de chocolate.
Quem sabe alguém aí também está precisando de uma dose de alegria gratuita?
Sorrisos achocolatados meus para vocês!
[Dulce Miller]
* Texto originalmente publicado no Retratos da Alma.
Na foto é a minha sobrinha Bianca, toda suja e feliz com um chocolate que a tia maluca deu pra ela se lambuzar de propósito!
Olá Du, nossa que texto em!
ResponderExcluirSua sobrinha é uma graça *-------*
Fiquei sensibilizada com a história do júlio e feliz por você conseguir seguir em frente mesmo tendo motivos para chorar!
Sabe aquele texto que dispensa comentários, pq a real função dele é incentivar a reflexão no próximo? Pois é, então...
ResponderExcluirPS: Sua sobrinha é sua cara. É linda!
Beijos com sabor de chocolate em seu coração.
Relatos assim fazem com que possamos refletir mais sobre nossas vidas, nossos dias e seus momentos, bons e ruins. Alegro-me de ser seguidor do teu blog e ler coisas assim: simples, mas que fazem a diferença.
ResponderExcluirSim, tua sobrinha é linda!!!
Beijos!
A sobrinha tem os olhinhos da tia. E olha, Du. Por muito tempo eu fiquei com vergonha de ter vários sentimentos de alegria e prazer porque alguém na minha volta não estava tendo.
ResponderExcluirO que contas aqui parece um pouquinho eu mesma com dó de ser feliz porque os outros a meu lado não estavam sendo.
E depois que virei borboleta então, aí que descobri que dá para ser feliz.
Beijos! :)
Que história bonita, Du.
ResponderExcluirJá disse que eu adoro histórias, sobretudo histórias da infância. Elas explicam tanto do que nós somos e como nos sentimos enquanto adultos.
Coitado do Júlio. Fiquei com o coração partido de pena dele.
Talvez o Júlio tenha te ensinado a perdoar mentiras, sempre achando que elas podem encobrir um bom propósito.
Quem sabe...
Ainda bem que esse episódio não te fez deixar de ser essa bobona que ri de qualquer coisa e que passa horas ao telefone rindo de umas coisas que nem existem e que a gente fica só imaginando. E rindo.
Amo você!